[opinião] Decreto de Dilma cala e engessa Estados e Municípios – por Maria Lucia Fattorelli

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No apagar das luzes de 2015, a presidenta Dilma editou o Decreto no 8.616 , que regulamenta a modificação dos termos dos contratos de refinanciamento de dívidas de estados e municípios que havia sido aprovada pela Lei Complementar 148, de 2014 .

Essa regulamentação era esperada desde 2014, quando a referida Lei Complementar foi sancionada. Entretanto, na tarde de 24 de março de 2015, a presidenta declarou que não iria cumprir a Lei Complementar no 148/2014.

Depois de vários meses, surge, finalmente, a regulamentação. Mas em que termos? Trazendo uma série de condições e exigências que vão muito além do texto da Lei Complementar que pretendia regulamentar pífias modificações que simplesmente trocam o índice de atualização (de IGP-DI para IPCA), e reduz a taxa de juros reais (que variava de 6% a 9% para 4% ao ano). Tais modificações não irão valer a partir da vigência da Lei Complementar no 148/2014, mas somente a partir da assinatura de aditivos contratuais que desrespeitam o Federalismo.

A exigência mais violenta, por sua gritante inconstitucionalidade, requer que, previamente à obtenção do insignificante desconto nas condições financeiras do contrato, o ente federado abra mão de qualquer questionamento jurídico sobre a dívida ou o contrato de refinanciamento, renunciando expressamente a qualquer ilegalidade em relação aos mesmos!

Tamanho abuso consta do art. 2o, inciso II, do referido Decreto 8.616:

II – desistência expressa e irrevogável de ação judicial que tenha por objeto a dívida ou o contrato com a União sobre o qual incidam as condições previstas nos arts. 2º a 4º da Lei Complementar nº 148, de 2014, e renúncia a quaisquer alegações de direito relativas à referida dívida ou contrato sobre as quais se funda a ação;

Quem já visitou outros contratos de dívida externa, celebrados na década de 1980 sob o cabresto do FMI, reconhecerá logo os termos de referido dispositivo. O brilhante relatório do então Senador Severo Gomes tratou de semelhante cláusula de renúncia à nulidade, entre outros aspectos jurídicos que merecem ser revisitados .

A razão para essa absurda exigência se deve ao fato de a dívida e os contratos dos entes federados se encontrarem inflados por ilegalidades e ilegitimidades desde a origem dos convênios firmados com base na Lei 9.496/97, cuja gênese está expressa em Carta de Intenções de dezembro/1991 com o FMI, itens 24 e 26 . Dentre as ilegalidades dessas renegociações cabe destacar:

• Desrespeito ao Federalismo: A exagerada remuneração nominal estabelecida na Lei 9.496/97 impôs ônus excessivo aos Estados e Municípios. Em 2010, por exemplo, entes federados pagaram cerca de 20% de remuneração à União, enquanto esta emprestou aos Estados Unidos da América do Norte a taxa inferior a 1% e o BNDES emprestou a empresas privadas a taxas inferiores a 6% ao ano;

• Desrespeito à Sociedade: Da mesma forma que não cabe a cobrança de tributos entre os entes federados (Constituição Federal, art. 150, VI, “a”), pois estes recairiam sobre o cidadão que ao mesmo tempo vive em um município, num estado e no país, o ônus excessivo recai sobre o cidadão brasileiro, e sem contrapartida alguma, pois a mesma Lei 9.496 determinou que os valores recebidos dos Estados e Municípios se destinam obrigatoriamente ao pagamento da dívida pública federal;

• Cobrança de juros sobre juros: a elevada exigência de remuneração tem transformado parcela de juros em nova dívida, sobre a qual passa a incidir o anatocismo, ilegal conforme súmula 121 do STF, de 1963, que assim se pronunciou: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.

• Capitalização mensal de juros: A Lei da Usura (Decreto nº 22.626/1933), vigente, estabeleceu: “Art. 4º – É proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta-corrente de ano a ano”.

Dessa forma, juros vencidos e não pagos deveriam ser computados à parte, mas sobre estes não poderiam incidir novos juros, em obediência à Súmula 121 do STF.

O texto do Decreto 22.626/33 aponta para mais uma questão relevante: os juros somente poderiam ser acumulados em conta-corrente ao final de cada ano e não mensalmente.

• Cobrança de juros superiores aos autorizados pelo Senado: Na prática, os juros que estão sendo pagos pelos entes federados têm sido superiores aos autorizados em Resoluções do Senado Federal. No caso de Minas Gerais, por exemplo, em vez dos 7,5% a.a. autorizados pelo Senado, foram pagos 7,763%, o que significou erro nos cálculos superior a R$ 2 bilhões no período analisado. No caso do Rio de Janeiro, em vez de 6%, foram pagos 6,17% a cada ano.

• Exigência de robustas garantias: O pagamento das dívidas dos entes federados tem como garantia as transferências constitucionais obrigatórias devidas pela União, o que significa que o risco de inadimplência é nulo, não justificando cobrança de remuneração tão abusiva;

• Desequilíbrio entre as partes: Estados e Municípios haviam sido impedidos de acessar outros créditos com entidades federais (Decreto nº 2.372/97) e foram forçados a aderir às condições da Lei 9.496 para refinanciar dívidas anteriores em condições ainda mais onerosas, além de submeterem a amplo programa de privatizações e ajuste fiscal.

• Desconsideração do valor de mercado dos títulos estaduais e municipais: A União não considerou o baixo valor de mercado da dívida mobiliária estadual e municipal, tendo refinanciado tais dívidas a 100% de seu valor nominal, o que representou inaceitável transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado. Também foram ignoradas as práticas fraudulentas denunciadas pela CPI dos Títulos Públicos (conhecida como CPI dos Precatórios).

• Assunção de dívidas privadas representadas por passivo de bancos estaduais no esquema PROES: Passivos dos bancos estaduais privatizados (ou não) foram transferidos para os respectivos estados e foram refinanciados em conjunto com as dívidas de cada estado, onerando indevidamente as finanças estaduais;

• Desconsideração dos antecedentes: Não foram considerados os impactos da política monetária federal, principalmente no início dos anos 90, que provocou crescimento astronômico da dívida dos Estados antes da negociação, evidenciando co-responsabilidade da União;

• Adoção do IGP-DI: A adoção do índice (IGP-DI) calculado por uma instituição privada (IBRE/FGV) provocou crescimento da dívida dos entes federados de forma injustificada;

• Ausência de cláusula do equilíbrio econômico-financeiro do contrato: ao contrário do que faz nos contratos administrativos de longo prazo, a União não estabeleceu tal cláusula para proteger os entes federados;

• Condições diferentes para cada Estado: a taxa de juros reais variou de 6% a 7,5%, e o comprometimento da receita dos Estados variou de 11,5% a 15%.

Os contratos de refinanciamento de dívidas de Municípios se deram com base na Medida Provisória no 1.811/99 , que segue a mesma lógica.

O recente Decreto 8.616, de 29/12/2015, engessa e cala estados e municípios, impedindo-os de arguir os aspectos acima elencados, ou quaisquer outras ilegalidades embutidas nas dívidas ou nos contratos dos entes federados!

Tais refinanciamentos vêm absorvendo grande parte dos recursos dos orçamentos estaduais e municipais, afetando a vida de toda a sociedade que paga a conta, tanto por meio dos elevados tributos, como por meio dos serviços públicos que deixa de receber. Apesar de pagar a conta, a sociedade não sabe que dívidas são essas; como foram contraídas; onde foram aplicados os recursos; quem se beneficiou dos empréstimos; qual a natureza dos passivos dos bancos estaduais privatizados que foram transformados em dívida do estado, etc.

Estados e diversos municípios brasileiros amargam sérias dificuldades para continuar cumprindo as onerosas condições impostas pela União desde o final da década de 1990, que fizeram com que as dívidas se multiplicassem e se transformassem em uma bola de neve.

Para se ter uma ideia, o município de São Paulo refinanciou uma dívida de R$11 bilhões no ano 2.000. Em 2013 essa dívida alcançou o patamar de R$ 58 bilhões, apesar de o município ter pago R$28 bilhões para a União no período. A conta não fecha, os números não batem, pois entram em ação os perversos mecanismos de atualização monetária mensal cumulativa calculada com base em um dos índices mais onerosos, o IGP-DI, calculado pela a FGV – instituição privada.

Em cima dessa correção mensal, ainda incidem os elevados juros, a cada mês. E essa onerosidade de condições não é o único problema dos paulistanos. Recaem, sobre a origem da dívida que foi refinanciada, diversas denúncias de fraude comprovadas até por Comissões Parlamentares de Inquérito. Resultado: a maior cidade da América Latina não tem recursos para uma série de investimentos essenciais à população, mas vem pagando religiosamente essa dívida eivada de fraudes, ilegalidades e ilegitimidades. E de acordo com o novo decreto 8.616, não poderá mais questionar nada disso.

A situação de diversos entes federados ficou tão onerosa que alguns preferiram buscar recursos no exterior, endividando-se junto a bancos privados internacionais e Banco Mundial, para pagar à União. Uma verdadeira aberração! E mais: diante da expressiva alta do dólar, os entes federados que adotaram essa alternativa esdrúxula se deparam com dificuldades ainda mais graves.

Nesse imbróglio, pressionados pela própria União, temos detectado a adoção de esquema ilegal que irá gerar ainda mais dívida para estados e municípios. Trata-se de sofisticado arranjo que vem sendo implementado por diversos entes federados, por meio da criação de empresa independente, sociedade anônima, que passa a gerenciar ativos públicos e emitir debentures que, na prática, constituem obrigação de mesma natureza de dívida pública, já que conta com a garantia dos respectivos entes públicos. Tal mecanismo inconstitucional beneficia principalmente ao setor financeiro privado, disfarçando a geração de dívida pública e comprometendo seriamente as finanças públicas e a população, tanto a geração atual como as futuras.

Tanto esse recente esquema como as dívidas refinanciadas anteriormente fazem parte do que denominamos Sistema da Dívida, ou seja, a utilização do instrumento do endividamento público para transferir recursos públicos para o setor financeiro privado.
Desde a aprovação da Lei 9.496/97e da edição da MP 1.811/99, todos os pagamentos de dívidas por parte de estados e municípios à União são destinados por esta ao pagamento da dívida federal, conforme dispositivos idênticos que constam dos respectivos atos legais .

Não há saída sem o enfrentamento do Sistema da Dívida, como afirmamos em recente carta aberta endereçada aos governadores, comentada pelo ilustre professor Adriano Benayon . A ferramenta que joga luz sobre esse processo e revela a verdade é a AUDITORIA.

Maria Lucia Fattorelli [i]

[1] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulos para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia a partir de abril/2015.
[2] Decreto 8.616, de 29/12/2015, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8616.htm
[3]Lei Complementar 148, de 2014, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp148.htm .
Decorre de projeto de lei apresentado pelo governo federal ao Congresso Nacional, que recebeu o no 238 na Câmara dos Deputados e no 99 no Senado Federal.
[4] Relatório do Senador Severo Gomes à CPI Mista em 1989, disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=66528&tp=1
[5] FATTORELLI, Maria Lucia Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados (2013) Inove Gráfica e Editora, Brasília.
[6] Esta Medida Provisória foi sendo reeeditada até a MP 2.185-35/2001, quando passou a vigorar permanentemente.
Lei 9.496/97, Art. 12 e MP 1.811/99, Art. 10.
[7] BENAYON, Adriano, Mais golpes do Sistema da Dívida, disponível em http://www.auditoriacidada.org.br/mais-golpes-do-sistema-da-divida/

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